Entrevista com um dos mais respeitados pais-de-santo do Brasil, Agenor Miranda Rocha emite opiniões corajosas sobre o candomblé.
A reabertura dos terreiros de candomblé no feriado religioso de
Corpus Christi traz, todo ano, à Bahia um dos mais queridos e
respeitados sacerdotes do povo de santo, o oluwô (dono dos segredos)
Agenor Miranda Rocha, 93 anos. No último dia 13, ele se dividiu na
típlice jornada de visitar o Gantois, a Casa Branca e o Ilê Axé Opô
Afonjá.
Poeta, intelectual, escritor, cantor lírico e educador, ele é o
responsável pelo jogo que indica os representantes na sucessão para as
grandes casas de candomblé da Bahia. Foi seu jogo que nomeou mãe Stella,
para o Opô Afonjá, e Tatá, para a Casa Branca. Pelo apartamento de pai
Agenor, no Rio, passam, diariamente, dezenas de pessoas, incluindo
artistas globais e políticos, que confiam a vida ao seu jogo de búzios.
Natural de Angola, pai Agenor veio para a Bahia com 5 anos de idade.
Ainda criança, recebeu, de Eugênia Ana dos Santos, mãe Aninha, a vocação
para o candomblé. A vida do oluwô já foi registrada em um livro, de
Diógenes Rebouças Filho (Pai Agenor
http://www.corrupio.com.br/cat_agenor.htm, editora Corrupio, 1997), e,
agora, será tema do documentário Um Vento Sagrado, com roteiro e direção
de Walter Pinto Lima e Carlos Vasconcelos Dominguez (este, morto no ano
passado).
Nesta entrevista, concedida no último dia 16, antes de voltar para o
Rio de Janeiro, pai Agenor fala sobre sua concepção de candomblé,
critica o sacrifício de animais, o jogo cobrado e a grande exposição que
a religião ganhou atualmente.
P – Quando e como surgiu sua vocação para pai-de-santo?
R – Não sou pai-de-santo, sou zelador-do-santo. O santo é que é meu
pai. Eu acho esta nomenclatura (pai-de-santo) muito errada. Eu zelo.
P – Como o senhor vê, então, a utilização da nomenclatura pai-de-santo pelo candomblé?
R – Eu já encontrei isso quando fiz santo. Eu é que não me sinto bem
em dizer que sou pai-do-santo. Para eles (algumas pessoas do candomblé),
é uma glória dizer isso.
P – Voltando à sua vocação para zelador-de-santo, quando e como ela surgiu?
R – Eu tinha 5 anos. Na verdade, não fui eu quem procurou o
candomblé, o candomblé é que me procurou. Minha família era toda
católica, apostólica, romana, nunca “assistiu” a um candomblé. Nasci em
Ruanda, capital de Angola. Vim para a Bahia com 5 anos. A vocação surgiu
desde que eu nasci. Um africano disse isso para minha mãe antes do meu
nascimento. Ela não acreditou, mas ele acertou em tudo. Ela me esperava
para outubro, ele disse que era para setembro. Eu nasci no dia 8 de
setembro de 1907. Disse que eu ia trazer uma mancha vermelha na cabeça.
Eu trouxe. Quando chegamos aqui, na Bahia, eu fiquei para morrer. Os
médicos desenganaram-me. Minha mãe Aninha, a que fundou o Axé Opô
Afonjá, fez o jogo e disse que eu não tinha nada, que era o orixá que
iria ser feito. Fez-se o orixá, em 1912, e eu estou aqui.
P – O senhor ocupa um dos mais altos postos no candomblé. Como atua um oluwô?
R – A mando dos orixás. Sem alarde e sem vaidade. Na realidade, o
magistério é que foi minha carreira. Trabalhei no magistério 47 anos, e
saí com pena. Eu nunca vivi do santo. Eu vivo para o santo. Até meu jogo
de búzios, nunca cobrei. Não cobro, porque eu duvido um pouco dessa
caridade cobrada. Ela deixa de ser caridade quando é cobrada. Eu sou
feliz, os orixás me deram essa missão, mas me deram também uma
profissão. Então, não há necessidade de eu cobrar.
P – Nesses seus 93 anos, houve algum fato, alguma experiência que o marcou? No candomblé, por exemplo?
R – Diversos. Teve um episódio na minha casa, no Leme, no Rio, em
1947. Eu sonhei com Xangô me dizendo que estava segurando a casa até eu
me mudar, pois a casa iria desabar. Eu mudei às 5 horas. Às 7 horas, a
casa desabou. Então, eu tenho que ter amor aos orixás. Não posso
vendê-los, me aproveitar.
P – Na Bahia do Senhor do Bonfim, o sincretismo religioso
está muito presente. Qual a sua opinião sobre o sincretismo,
considerando que o senhor é um zelador-de-santo, filho de pais
católicos?
R – Não há crime nenhum no sincretismo, porque, se não fosse o
sincretismo, não haveria candomblé hoje. Essa é que é a verdade. As
mães-de-santo e os pais-de-santo não querem o sincretismo. Mas tem que
haver. Se não fosse o sincretismo, como é que o candomblé iria
sobreviver até hoje? Teria morrido. Agora, eles não gostam quando eu
falo isso. Mas eu falo o que sinto. Não falo pelos outros, falo por mim.
P – O senhor é devoto de Santo Antônio e de São Francisco de
Assis e vai sempre à cidade de Assis, na Itália, venerar São Francisco.
Como é que o senhor lida com isso dentro do candomblé? Existe
preconceito?
R – Se há preconceitos, é com eles. Eu sou eu. Nunca tive conflito.
E, agora, tem mais uma coisa: eu sou do santo, católico e espírita.
Assim como na família: nem todos são iguais, mas convivem bem. Não é
isso? É uma questão de fé.
P – O senhor tem uma veia poética Sua mãe era cantora lírica e seu pai, diplomata. Como surgiu sua ligação com a poesia?
R – É muito forte. Eu me acho poesia; então, olhando poesia, vou
fazendo poesia e me sinto bem. Desde criança já fazia versos. Eu tenho
um livro de poesia publicado com o nome de Oferenda. Gravei também um
disco de ópera, um de fado e outro de canções napolitanas. Fui cantor.
Cantei com Bidu Sayão. Éramos muito amigos.
P – O senhor fez poemas sobre o candomblé?
R – Não! No tempo que eu fiz santo, tudo era segredo. Hoje é que o candomblé está banalizado.
No meu tempo, não tinha nem vaidade nem essa divulgação.
P – Qual a diferença do candomblé do passado para o candomblé atual?
R – Bom, eu costumo, numa frase, mostrar: eu sou do candomblé de
morim (pano de algodão muito fino e branco). Hoje, é candomblé de lamê
(plumas, lantejoulas). Parece uma escola de samba.
P – O sacrifício de animais, um dos ritos mais comuns e simbólicos do candomblé, é contestado pelo senhor. Por quê?
R – Acho que é uma maldade. Os orixás, que são fragmentos da
natureza, precisam de sangue? Matar os animais que representam a
natureza? Matar, além de tudo, com uma faca, devagarinho, com cantiga,
até chegar em uma palavra para tirar a cabeça do bicho. Não dá! Sou
contra a matança. Na vida, tudo evolui com o tempo. O candomblé podia
ter evoluído um pouquinho, ser mais moderado. O candomblé, hoje, é um
luxo.
P – Quanto à humanidade, que perspectivas há para ela diante das espécies em extinção, do desmatamento e da poluição ambiental?
R – Desse jeito, vamos chegar ao caos. Destruindo a natureza, o homem
acaba consigo mesmo. As pessoas deveriam seguir a evolução natural da
Terra. Não deveriam ter tanta inveja, tanta sede de poder. Da sede do
poder, nasce a inveja, que é um sentimento muito negativo. Destrói uma
pessoa. Aconselho às pessoas a não terem inveja e a viver, cada um, com o
que Deus lhe deu. Se eu não tenho inveja, quero que as pessoas subam e
não que caiam. Cada um tem seu valor.
P – Que lembranças o senhor traz da época de Getúlio Vargas, quando trabalhou como técnico em educação?
R – Muita gente fala mal do Getúlio, mas eu só trago boas lembranças.
Sempre me tratou muito bem, com muita amizade. Até mesmo
carinhosamente. Então, não posso dizer nada. Trabalhei com ele em 1933,
1934 e 1935. Para mim, Getúlio era muito bom, era meu amigo e, para mim,
meus amigos não têm defeitos.
P – Como é que está a situação política do Brasil hoje para o senhor?
R – Não me pergunte isso, porque eu quero sair daqui para o avião.
Não quero sair daqui para a cadeia. Se a gente for falar o que sente… Eu
acho que o Brasil poderia estar numa situação muito melhor, se nós
tivéssemos no alto poder, mais patriotas.
P – O que o senhor está achando do documentário?
R – Quiseram que eu fosse estrela, e Oxalá consentiu.
Fonte: Gladys Pimentel
Jornal A Tarde 24/06/2001
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